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Os Sons do Shofar

Em Rosh Hashaná, o ano novo judaico, os judeus se reúnem nas sinagogas do mundo inteiro para ouvir o toque do shofar. Três diferentes sons deste instrumento feito de chifre de carneiro são ouvidos. O primeiro, a tekiá, é um som simples e longo. A seguir vêm os shevarim, três toques curtos e por fim a teruá, uma série de nove toques em staccato. Qual será a razão de serem ouvidos três diferentes tipos de toques quando a Torá ordena apenas um deles, a teruá? Haverá, que por trás desta tradição, algum significado simbólico? E que emoções deveriam provocar o som do shofar?

A origem da tradição dos diferentes toques de shofar em Rosh Hashaná encontra-se no Talmude. No tratado de Rosh Hashaná 33b lê-se que Abaye, um dos grandes sábios do período talmúdico, ensinou que a controvérsia com relação ao som de teruá está ligada à interpretação do versículo de Números 29:1, que trata sobre os toques do shofar em Rosh Hashaná. Lê-se, aí que “este deverá ser o dia de tocar a teruá”. O dia de Rosh Hashaná é, por isto, chamado na Bíblia de Yom Teruá, ou seja, o dia do toque do shofar.

Na tradução para o aramaico, que era o idioma judaico no período talmúdico, porém, o dia é chamado de Yom Yevavá (o Dia do Lamento). Para explicar esta discrepância de nomes os rabinos recorreram ao próprio texto bíblico. No livro de Juízes 5:28, onde se narra a luta dos israelitas contra seus inimigos comandados por Sisrá, lemos que a mãe de Sisrá, um general, quando recebeu a notícia da morte de seu filho ficou parada na janela e chorou, em hebraico vativav. A teruá, portanto, seria o som do choro de uma mãe. Nas discussões talmúdicas entre os rabinos sempre se encontra uma multiplicidade de opiniões. Sobre este tema, especificamente, um grupo de sábios sustentava que o choro da mãe de Sisrá se parecia com um suspiro e deste modo o toque da teruá deveria se parecer com o de shevarim, cujos três sons seguidos que lembram um suspiro. Outro grupo de sábios era de opinião que seu choro se parecia com uma serie de soluços e, deste modo, com aqueles sons curtos da teruá atual, que lembram soluços.

Esta não é apenas uma discussão abstrata, nem tampouco deveria ser entendida apenas em seu aspecto tecnicista, sobre o modo como a mãe do general Sisrá pranteou seu filho. Ao relacionar o som do toque do shofar ao choro de uma mãe, os sábios parecem querer passar uma mensagem mais profunda. O que será que se deveria ouvir, no íntimo, ao escutar os toques do shofar? Que emoções estes sons deveriam despertar em nós?

O toque de tekiá, constituído de uma simples e longa nota, é um chamado, um toque de convocação. Ele era usado na Israel bíblica para reunir o povo em assembléias ou convocar os homens para a guerra. Segundo a tradição mística judaica, esse será o toque que soará no início da era messiânica. É também esse toque simples que anunciava, nos tempos bíblicos, o ano do Jubileu (Yovel), quando a redenção de todas as dívidas era proclamada e, finalmente, é este toque que, hoje em dia, encerra o Yom Kipur, ou Dia do Perdão, que se celebra dez dias depois do ano novo. O Yom Kipur é um dia severo, de jejum e de introspecção, e à medida em que se aproxima o seu fim, ao entardecer, os celebrantes, cansados, anseiam pelo som do shofar¸ que marca o fim do período de abstinência. Ao fim do dia, há também uma sensação de triunfo, em função da elevação espiritual alcançada por meio das preces e da introspecção.

É comum trajar-se roupas novas na celebração do Rosh Hashaná. No jantar, com familiares e amigos, tradicionalmente come-se coisas doces, como que para propiciar um ano bom e doce. Porém os Yamim Noraim – ou Dias Terríveis – como são conhecidos os dez dias que separam o Rosh Hashaná do Yom Kipur – despertam outras emoções. Trata-se de um período de autocrítica, em que a tradição prevê que cada um faça um balanço de sua vida e de seus atos no ano que terminou. Essa introspecção é uma fonte de energia interior e de auto-renovação, bem como de busca por novos comportamentos e atitudes. O trabalho espiritual que se inicia em Rosh Hashaná chega à sua culminação no Yom Kipur, o dia da expiação e do jejum, em que se toma consciência da fragilidade da existência humana, e dos limites das forças que muitas vezes não bastam para que se realizem as expectativas.

Não surpreende, portanto, que os toques do shofar expressem essa dualidade também. O toque de alegria e triunfo da tekiá é contrabalançado pelos toques quebrados ou suspirados da teruá e shevarim, que parecem imitar o pranto.

Segundo o livro dos Juízes, Sisrá era um general inimigo que oprimiu Israel. Débora, a profetisa, reuniu um exército e Sisrá foi derrotado. Em sua fuga, acabou sendo morto pela jovem Yael quando buscava refúgio. A Bíblia celebra esse momento no Canto de Débora. Na interpretação midráshica das narrativas bíblicas os rabinos debatem sobre o que se reconhece como o choro da mãe de um inimigo. O que nele se reconhece é o humano, aquilo que têm em comum todos os seres humanos. Alguns rabinos diziam que esse clamor, vindo do interior, deveria soar como o shevarim, isto é, como um suspiro. Outros, que se parecia com uma serie de soluços, a teruá. Mas todos concordavam que tal som deveria expressar a dor e o sofrimento daquela mãe. Não a mãe de um companheiro, mas a mão do outro, a mãe do inimigo.

Débora agiu de modo a salvar Israel e fez o que era necessário naquela hora. E ainda assim, em Rosh Hashaná rememora-se não apenas o orgulho da vitória, mas também a dor que foi causada à mãe dos inimigos de Israel.

Em vários midrashim, ou interpretações do texto bíblico, o som do shofar é comparado ao som da redenção final, como anseio pela era messiânica. Quando chegará o momento da redenção? Quando todos forem capazes de ter compaixão, de incorporar e de sentir a dor da mãe de seus inimigos. Esse é o caminho da humanização. A Torá, a mensagem espiritual de Israel, tem como objetivo a humanização: é preciso saber ver os dois lados da história: a própria necessidade e humanidade e a necessidade e humanidade do outro, que pode mesmo ser o nosso inimigo.

Certamente que essa lição é válida tanto nas nossas vidas pessoais quanto nos assuntos coletivos, dos quais tomamos parte, voluntária ou involuntariamente.

Shaná Tová,


Rabino Alexandre Leone

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